quinta-feira, agosto 18, 2016

Venezuela: crise leva as mulheres a recorrem à esterilização

Procura de cirurgias para laqueação das trompas tem aumentado, face às dificuldades económicas das famílias venezuelanas. A escassez de víveres, a inflação e o colapso do setor médico na Venezuela tornaram-se uma tal fonte de angústia que um número cada vez maior de mulheres jovens opta relutantemente por recorrer à esterilização em vez de enfrentar todas as dificuldades da gravidez e da maternidade. Os contracetivos tradicionais, como os preservativos ou a pílula, desapareceram praticamente das prateleiras dos estabelecimentos, empurrando as mulheres para uma cirurgia quase irreversível.
"Ter um filho hoje em dia significa fazê-lo sofrer", afirmou Milagros Martínez, enquanto aguardava, sentada no banco de um parque, numa destas manhãs, a esterilização a que iria ser submetida num centro de saúde municipal das imediações, em Caracas. Empregada num talho dos subúrbios pobres da capital, esta mulher de 28 anos decidiu-se pela cirurgia depois de ter tido um segundo filho não planeado por não conseguir encontrar à venda a pílula anticoncecional. O seu quotidiano gira em redor da procura de alimentos: levanta-se a meio da noite para ir para as longas filas dos supermercados, por vezes sem outra alternativa que não seja levar consigo o bebé, que já sofreu queimaduras solares durante as longas horas de espera. "Sinto algum receio da esterilização, mas prefiro isso a ter mais filhos", diz Milgaros Martínez, que, juntamente com dezenas de outras mulheres, apanhou um autocarro nos bairros de lata às 4.00 da madrugada para poder participar no "dia da esterilização" que tem lugar nesta área abastada de Caracas. Não existem estatísticas nacionais recentes sobre as esterilizações, mas médicos e profissionais de saúde dizem que a procura desta cirurgia tem aumentado. O programa local de saúde da mulher no estado de Miranda, que abrange algumas áreas de Caracas, disponibiliza 40 postos nestes "dias da esterilização". Porém, até há um ano estes postos não esgotavam habitualmente a sua capacidade. Agora, todos os horários estão preenchidos e há cerca de 500 mulheres em lista de espera, de acordo com a diretora do programa, Deliana Torres. "Antes, impunha-se como condições para beneficiar deste programa que as mulheres auferissem baixos rendimentos e tivessem pelo menos quatro filhos. Agora, temos aqui mulheres com um ou dois filhos que querem ser laqueadas", afirmou. Profissionais de saúde numa organização nacional de planeamento familiar e em três hospitais públicos nos estados de Falcon, Tachira e Mérida corroboraram o seu ponto de vista de que os pedidos de esterilização aumentaram nos últimos meses. Esta tendência demonstra até que ponto a recessão brutal neste país rico em petróleo está a obrigar as pessoas a fazer escolhas difíceis.
País católico
A Venezuela é um país de maioria católica onde a doutrina da Igreja rejeita todas as formas de contraceção e onde o aborto está proibido a menos que a vida da mulher corra perigo. O arcebispo de Mérida, Baltazar Porras, comentou à Reuters que um aumento das esterilizações seria uma "barbaridade". Mas a crise venezuelana tem provocado motins quase diários relacionados com a procura de alimentos e fustigado a classe média, cada vez mais reduzida, assim como os pobres que foram em tempos um bastião de apoio à sui generis "revolución bonita" do falecido dirigente esquerdista Hugo Chávez. As grávidas são particularmente atingidas, atarefando-se para encontrar os alimentos e suplementos adequados, dando à luz em hospitais sobrelotados e mal equipados e passando horas em filas para poder adquirir as escassas fraldas e os alimentos e medicamentos para bebés. Os ministérios da Saúde, da Mulher e da Informação não responderam aos pedidos de um comentário. As esterilizações são geralmente um procedimento simples que envolve o fechamento ou bloqueamento das trompas de Falópio da mulher, designado geralmente por laqueação das trompas.
"Fiquei a saber destes dias da esterilização gratuita através da rádio. Tomei imediatamente duche, vesti-me e saí [para saber mais informações sobre eles]", disse Rosmary Teran, de 32 anos, que teve o segundo filho há dois meses e que também chegou ao centro de saúde ainda antes do nascer do dia, vinda de um bairro pobre. Alguns profissionais de saúde receiam que o descalabro económico esteja a pressionar as mulheres no sentido de fazerem uma escolha de que poderão vir a arrepender-se se a crise se atenuar. "Algumas vezes ouvimos aqui: "O meu marido disse-me que fizesse uma esterilização, porque mais um filho não seria praticável"", referiu a assistente social Ania Rodríguez, do grupo de planeamento familiar PLAFAM, no centro de Caracas. Rodríguez diz que chega a receber diariamente até cinco mulheres desejosas de fazerem uma esterilização, bem acima do número de uma ou duas por semana que recebia há um ano. Quando as mulheres aparentam ter dúvidas ou estar a ser pressionadas para a esterilização, Rodríguez tenta convencê-las a recorrerem a contracetivos como os dispositivos intrauterinos, que parecem existir no mercado em maior quantidade e serem mais acessíveis do que a pílulas ou os preservativos.
Pacotes de três preservativos
Quando os têm, as farmácias vendem um pacote de três preservativos por cerca de 600 bolívares, apenas uns 55 cêntimos ao câmbio do mercado negro, mas um gasto elevado para quem ganha o salário mínimo de 33 mil bolívares por mês. No mercado de revendas de Caracas, os mesmos preservativos chegam a custar à volta de dois mil bolívares. A elite venezuelana pode pagar, mas a classe média enfraquecida e os pobres estão cada vez em maiores dificuldades.
"Não consegui encontrar as injeções [contracetivas], nem a pílula, nada. No mercado negro é muito caro e agora já nem aí se encontram", queixa-se Yecsenis Ginez, de 31 anos, que tem um filho e decidiu submeter-se a uma esterilização. "Pensei em vir a ter cinco filhos, já tinha imensos nomes em mente. Mas, agora, seria uma loucura engravidar." Ainda assim, algumas mulheres tiveram de esperar meses para serem esterilizadas, porque as vagas nos hospitais públicos são limitadas e as clínicas privadas podem cobrar até 12 vezes o valor do salário mínimo mensal na Venezuela. E alguns centros de saúde não podem sequer proceder às esterilizações devido à falta de equipamento ou de especialistas. Durante o boom do petróleo que parece agora tão distante, o então presidente Hugo Chávez criou nos bairros pobres milhares de centros de saúde, atendidos por médicos cubanos, e deu início a programas populares de saúde materna durante os anos em que esteve no poder (1999-2013). Mas com o modelo económico estatal da Venezuela em descalabro e os preços do petróleo em baixa, os hospitais deterioraram-se consideravelmente já no mandato do seu sucessor, Nicolás Maduro. A escassez de medicamentos atinge cerca de 85%, de acordo com uma importante associação farmacêutica. A falta de equipamento abrange desde as luvas cirúrgicas às incubadoras e muitos médicos mal pagos têm abandonado o setor público ou emigrado. O governo venezuelano continua a afirmar que o país dispõe de um dos melhores sistemas de saúde do mundo e acusa os seus detratores de levarem a cabo uma campanha de difamação. No entanto, deixou de divulgar dados atualizados sobre a saúde.
Mortalidade neonatal
A Organização Mundial de Saúde afirma que a taxa de mortalidade neonatal da Venezuela era de 8,9 por cada mil nados-vivos o ano passado, acima da média de 7,7 no continente. Segundo a mesma fonte, a taxa de mortalidade materna na Venezuela foi de 95 por cada cem mil nascimentos vivos em 2015, uma das piores taxas da América Latina e acima dos 90 registados em 2000. Este país, com 30 milhões de habitantes, tem uma das taxas mais elevadas de gravidez de adolescentes na América Latina e um número considerável de famílias monoparentais, de acordo com dados das Nações Unidas. Enquanto aguardam a chamada para a sala de operações para serem esterilizadas, mulheres vestidas com batas azuis e toucas recordam saudosamente tempos mais felizes numa Venezuela outrora próspera. "Antigamente, quando engravidávamos, toda a gente ficava feliz", afirmou Yessy Ascanio, de 38 anos, mãe de dois filhos, sentada numa cama numa sala enquanto espera. "Agora, quando uma mulher diz "estou grávida", toda a gente a censura. Sinto pena das mulheres jovens." Enquanto algumas das mulheres ali presentes olhavam com nervosismo para as pacientes transportadas em cadeiras de rodas após a esterilização, Ascanio aconselhou: "Se tiverem medo, lembrem-se das filas para arranjar comida" (texto dos jornalistas da Reuters, Alexandra Ulmer e Carlos Garcia Rawlings, publicados no DN-Lisboa, com a devida vénia)

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