quarta-feira, agosto 17, 2016

Opinião: A Madeira também é minha

O poder tem a obrigação de se fazer presente quando o povo sofre e a terra arde. Mas sentiu-se o atabalhoamento da ignorância na matéria e percebeu-se o recurso à trivialidade dos lugares comuns.
1. Levei a vida a ouvir dizer que era curiosa. E a ver os outros atirarem-me com este adjectivo a toda a hora, “credo, tanta pergunta”. Quando fiz do jornalismo a minha vida, passou para: “ai tão curiosa, vê-se logo que é jornalista” Era o contrário: não faço perguntas por ser jornalista, sou jornalista também porque gosto de fazer perguntas. Aprendi com alguém melhor que eu que “o importante é não parar de perguntar” e a minha natureza fez o resto. E o resto foi, entre mil e mil exemplos – mas como fugir “deste” exemplo? – ter conhecido bem a Madeira. Vou lá há décadas, várias vezes ao ano, tenho poiso, amigos do peito, rotinas e de certa forma raízes. E graças ao Miguel Pita (mas se eu não fosse curiosa…) conheci mais: calcorreei paisagens, sítios, veredas, cachoeiras e levadas onde os turistas nunca foram.

(O Miguel Pita, que um amigo em boa hora me “indicou”, foi para nós um sábio e “privativo” guia. Professsor de Educação Física, produtor de eventos desportivos ligados à natureza – ele e a natureza são um “caso” – dedica-se hoje, já reformado, à sua ilha. Guardando-lhe os segredos mas revelando-os como ninguém.)
Tudo isto para dizer que já me sinto hoje um bocadinho “dali”.
2. Julgo porém que até há quatro ou cinco dias uma boa parte dos portugueses continentais associava a Madeira a um jardim debruçado sobre o Atlântico onde dantes havia outro Jardim a mandar nela e hoje há um líder de outra geração e outro gosto a governá-la. O continente sabe que há lá bananas, que o clima é doce e há muitos turistas. E a acrescentar à lista dos clichés, um famoso fogo-de-artifício de que as televisões se ocupam, no final de cada ano, trazendo-o a nossas casas. Podia ainda falar das preciosidades patrimoniais, do luxo civilizado dos hotéis, do exemplar cuidado do espaço publico. Mas há muito mais, como bem sabem os curiosos e o que há, vale muitíssimo a pena.
Agora porém, as pessoas, vestidas de telespectadores, certamente que se terão impressionado muito. Vou para lá amanhã, como todos os anos por esta altura mas quantas perguntas irão comigo, todas mais previsivelmente relativas a países subdesenvolvidos e de fraca vontade que a um país europeu. Já não há sequer lugar para clichés, dispensam-se os bilhetes-postais, nenhum deles resistiria à dimensão daquela dupla tragédia. Dupla pela dor e perda que provocou mas sobretudo porque era evitável.
O incendiário da Madeira era conhecido, já tinha incendiado, estava referenciado, sabia-se quem era e onde estava. Não é fácil, sabendo isto, conviver com isto.
3. Tratou-se de um crime. E mesmo suspeitando eu sempre da concretização de ajudas de milhões, oferecidos da boca para fora, diante da televisão, os 55 milhões supostamente agora prometidos pelas autoridades nacionais à Região, nunca absolverão uma réstia deste crime, impossível de redimir ou perdoar. Tenho vergonha dele, vergonha de ser testemunha directa de uma Justiça que assim se comporta. Com indiferença, com indolência, com irresponsabilidade. Tenho vergonha de sucessivos governos e governantes que mandaram fazer relatórios, nunca os leram, nem por eles perguntaram; que encomendaram estudos que jazem em gavetas perdidas; ouviram “técnicos” distraidamente mas que Agosto após Agosto nos prometiam ,nos écrans televisivos, novos relatórios , outros estudos, diferentes resultados e sobretudo “mais meios”.
Mas sempre, pouco ou nada atendendo – ou cuidando – de um capítulo essencial desta sórdida questão que é a penal. Sem alterarem ao menos parte da legislação ou do quadro penal que todos os verões nos consome de aflição enquanto consome o que resta do país.
Não é a única, é evidente. Mas esta dói. E tenho ainda vergonha (uma vergonha constrangida) pelo que “eles” dizem, a seguir. Ora intervindo a partir de animadas festas estivais, ora queixando-se da “falta de solidariedade europeia” (!). Ou falando no cenário da tragédia, em mediáticas “visitas relâmpago”, rodeados de gente aflita que não volta de Falcon para casa porque não anda de Falcon e já não tem casa. É claro que o poder tem a obrigação – e o direito – de se fazer presente quando o povo sofre e a terra arde. Mas sentiu-se o atabalhoamento da ignorância na matéria e percebeu-se o recurso à trivialidade dos lugares comuns.
E finalmente, tenho vergonha da indecência de alguns comportamentos de responsáveis (?) políticos. Como a lodosa e viscosa complacência da extrema esquerda – gurus do PS incluídos neste lote e onde haveriam eles de estar? – para com Portugal a arder como nunca. Aqui há um ano, a culpa teria sido de Passos Coelho (um alivio!). Martirizava-se a “culpa” e o “culpado” nas televisões, envoltos em meia dúzia de ferocíssimas e falsíssimas acusações ao governo “da direita” e voltava-se para a praia. Passou-se ontem, lembramo-nos. Uma vergonha. Hoje, conseguimos a proeza de ter ainda mais.
4. E era eu que (incautamente) aqui escrevia há dias sobre os privilégios de Agosto? Da liberdades de escolha de temas e assuntos que ele me oferecia, soltando-me da tutela da “actualidade” (texto da jornalista Maria João Avillez, no Observador, com a devida venia)

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