Nas suas declarações sobre as revelações (mais
confirmações do que revelações) dos chamados “Documentos do Panamá”, Marcelo
Rebelo de Sousa foi ao âmago da questão quando disse que o problema dos
offshores era um problema de democracia. E é.
Os offshores são, antes de tudo, do crime, da lavagem
de dinheiro, da fuga ao fisco, uma questão que significa para as democracias a
perda de um princípio básico — o de que o poder político legitimado pelo voto e
pelo primado da lei se sobrepõe ao poder económico. Por isso, tratar a questão
dos offshores apenas como sendo de natureza fiscal e andar às voltas por aí é
já um mau ponto de partida.
A questão que muitas vezes é iludida é que não existe
uma única razão económica sólida para que hajam offshores. Para que é que eles
servem para a economia, para a produção, para o emprego, para a indústria, para
o comércio, para o investimento limpo? Nada. Tudo aquilo para que os offshores
servem é para esconder dinheiro e os seus proprietários, para esconder a origem
do dinheiro, através de um conjunto de fachadas anónimas que depois vão
desaguar aos grandes bancos sediados na Suíça ou em Londres.
O que os políticos europeus dizem, quando confrontados
com esta realidade, ou com os escândalos periódicos, como o actual com os
documentos da Mossack Fonseca, é que não podem fazer nada e que o que podem
fazer fazem. Por detrás desta declaração de impotência — eu estou a falar de
políticos democráticos — está o retrato da captura ocorrida nas últimas
décadas, e agravada pela crise de 2008, da política em democracia pelos
interesses financeiros globais, pela banca, pelos “mercados”. Sim, porque uma
das faces semivisíveis dos offshores são os biliões que circulam em fundos e
outros tipo de operações financeiras e bancárias, a que nós chamamos os
“mercados”, o Deus ex machina que faz mover os países como marionetas.
Podem fazer alguma coisa? Podem fazer tudo. Repito:
podem fazer tudo. E acrescento: mas não querem. Podem fazer tudo, mas não
querem — esta é a frase que melhor resume o “problema para a democracia”. E não
querem por dois motivos. Um de fraqueza política, — a maioria dos políticos
europeus são gente frágil à frente de países fragilizados, uma combinação de
que resulta uma imensa fraqueza para lidar com interesses poderosos, como são
os que estão por detrás e pela frente dos offshores. O outro é a hegemonia nos
partidos de direita, e em muitos socialistas subservientes, de uma mistura
entre ideias sobre a economia, sobre o Estado, sobre as empresas, sobre a
governação dos países, que corresponde ao “pensamento único” que tem presidido
à política da Comissão Europeia, do Eurogrupo, aos partidos do PPE, e que tem
levado a cabo a política de Schäuble e dos alemães e de alguns outros países
seus aliados.
Este segunda razão é do “podem, mas acham bem”, e essa
aparece como de costume nos mais rudimentares defensores dos offshores que
pululam na nossa direita mais radical, nos jornais, nos blogues e nas redes
sociais. Eles são reveladores, porque têm a imprudência de dizer aquilo que os
de cima da cadeia alimentar pensam, mas não podem dizer. E todos ficaram
imensamente incomodados com os “Documentos do Panamá”, porque é “deles” e dos
seus que os “documentos” falam. E correram logo a dizer que era uma questão com
Putin e não com o capitalismo. Ou seja, os offshores são mais uma perversão do
comunismo e do socialismo e dos “oligarcas”, como gostam de chamar aos
poderosos do “outro lado”. E então é ler como os offshores são uma resposta à
tirania fiscal dos Estados “socialistas”, ou uma digna resposta da liberdade
económica do dinheiro e das empresas para fluir para todo o lado sem barreiras.
Sem dúvida, admitem, que há crimes e lavagem de dinheiro, mas são pechas
menores dos offshores. O essencial é que eles são mais uma manifestação normal
da liberdade económica e da luta contra a prepotência dos Estados e das
políticas “socialistas” dos altos impostos. Isto vem de quem fez o “enorme
aumento de impostos”, retirou aos contribuintes qualquer protecção face aos
abusos do fisco e só é “liberal” na bandeirinha da lapela. Pobre da “mão
invisível” que foi possuída pela família Adams.
Também nos offshores se verifica a escassíssima
vontade dos políticos europeus, que tem à sua cabeça institucional o senhor
Juncker, que tem no seu currículo ter feito enquanto primeiro--ministro do
Luxemburgo todo o tipo de acordos ilegais, insisto, ilegais, à luz das regras
europeias, destinadas a levar para o seu país empresas que aí encontravam um
paraíso fiscal protegidas pelo segredo de Estado. Ou no caso do Reino Unido, em
que dezenas de offshores estão em territórios sob soberania britânica.
O problema como sempre é o dos alvos e dos intocáveis.
Ou melhor: defender por todos os meios os “intocáveis” de serem tocados e
impedir que os alvos deixem de ser alvos. O objectivo da política do
“ajustamento”, policiada pelas instituições europeias sem estatuto democrático
como o Eurogrupo, ou pelo FMI, em consonância com os “mercados”, foi proteger o
sistema bancário, os “mercados”, o dinheiro que “flui” e, sem o dizer, no mesmo
pacote vão os offshores “contra os quais nada se pode fazer”. E o melhor
atestado de ineficácia da múltipla legislação europeia tão gabada nas suas
intenções de dar “transparência” ao sistema financeiro e combater a corrupção é
o que revelam estes “Documentos do Panamá” e muitas outras estimativas sérias:
o dinheiro que vai para os offshores é cada vez mais. Ponto.
A solução da questão dos offshores é simples, se
tivermos vontade para a aplicar. E desconfiem de quem venha com muitas
complexidades e complicações, é sempre mau sinal. Insisto, não é muito
complicado: trata-se de comparar o dinheiro dos offshores com o dinheiro dos
terroristas. Um rouba, em grande escala, Estados e povos, o outro mata. Um mata
à fome em África, outro nas ruas de Paris ou em Nova Iorque. Um destrói
economias, poupanças, classes médias criadas com muitos anos e esforços para
progredir, outro escraviza povos e reduz a ruínas países já muito pobres. É uma
comparação que admito ser excessiva, mas, se partirmos dela, talvez possamos
compreender (ou não) por que razão aquilo que se admite em termos de recursos
de investigação, penalizações duríssimas, confisco de bens do crime ou da
droga, ou da corrupção ou da fuga ao fisco, e se aplica ao dinheiro do
terrorismo, se pode aplicar ao dinheiro ilegal dos offshores. Ah! Já estou a
ouvir em fundo: “Mas muito desse dinheiro é legal.” Ai é? Então, qual é o
motivo por que em vez de estar inshore vai para os offshores?
Deixem-se por isso de falsos espantos e falsas
surpresas. Tudo o que está nos “Documentos do Panamá” não é novidade para
ninguém. Como não é novidade para ninguém o discurso de “não se pode fazer
nada”. Mas, se queremos salvar a democracia no século XXI, o problema do
dinheiro anónimo, escondido, fugido e protegido algures numa caixa de correio
humilde de uma casa nas Ilhas Caimão, ou num cacifo acolchoado de um luxuoso
escritório de advogados no Panamá é objectivamente mais dissolvente do que os
tiros de uma Kalashnikov nas ruas de Bruxelas. Faz-nos pior, porque os tiros
são-nos exteriores, são do “inimigo”, e os biliões das Ilhas Virgens são de
dentro, dos “amigos” (texto de JOSÉ PACHECO PEREIRA, Público, com a devida
vénia)
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