Ouvindo-o na sua campanha para se manter na
liderança do PSD, ocorre-me a magnifica tirada de Groucho Marx em Uma Noite na
Ópera: «Tudo em ti me lembra de ti. Exceto tu». Vivendo o quotidiano português herdado do
consulado de Passos Coelho, não é possível deixar de pensar no governo PSD
quando se recebe a reforma cortada a meio ou quando nos hospitais se desenrola
a eutanásia natural por falta de pessoal e meios. Quando vejo agora o novo Passos, ocorre-me
sempre a imagem dos espantosos sermões do antigo primeiro-ministro e dos seus
acólitos nas sinistras missas negras de novas noites de cristal, em que se
estilhava a dignidade de velhos e novos com conceitos como ‘a peste grisalha’
que empobrecia Portugal, e abria caminho ‘à substituição de populações
autóctones’ por imigrantes num ‘assustador desafio à nacionalidade portuguesa’.
Nem Himmler e Goebbles falaram melhor no comício no Estádio de Nuremberga. Nem
Cavaco no seu Dia da Raça.
Quem assim falou foi a escolha pessoal de
Passos Coelho para a Guarda, o deputado Carlos Peixoto. E Passos Coelho não o
corrigiu porque, por outras palavras, tinha dito exatamente a mesma coisa com
as suas prédicas sobre os méritos de empobrecermos (a única previsão realmente
correta do seu governo) e as exortações de coragem para os nossos jovens
«saírem das suas zonas de conforto» e irem mendigar sustento mundo fora.
Do Brasil a Timor, dizia ele – e o seu governo
fazia eco –, haveria lugar para os que aqui se acotovelavam nas filas do
desemprego.
Portanto, é inesquecível para uns milhões
largos de portugueses este Pedro Passos Coelho que agora se reinventa na
roupagem social-democrata, que tenta envergar como um último colete salva vidas
no Titanic nacional que ele atirou contra vários icebergs num mar de opções
erradas.
Ninguém se lembra de ter vislumbrado este novo
Passos Coelho, o da social-democracia (do socialismo democrático afinal),
quando o víamos nos delírios austeritários em que embarcou, sacrificando o
bem-estar de todo o país às folhas de contabilidade cega que, mesmo para um dos
seus gurus mais próximos, Vítor Gaspar, talvez não tivesse sido a fórmula mais
adequada para lidar com pessoas.
Na sua quase biografia que Maria João Avillez
brilhantemente compilou, Gaspar escolhe para ilustrar o seu memorialismo a
duríssima gravura de Goya de um sonhador rodeado por mochos e vampiros onde se
lê: «O Sonho da Razão Produz Monstros». Era o seu ato de contrição pelo malogro
da aplicação da austeridade racional e livresca como ele a recomendou a Passos,
quando era o número dois do Governo, e que produziu a monstruosidade em que
hoje vivemos.
Como diria Passos Coelho recentemente, já em
pleno ato de maquilhagem para entrar em palco com a nova persona de
social-democracia, teria ido «mais longe do que seria necessário» por «não
querer falhar». Foi longe demais e falhou, e por isso foi derrotado nas
eleições. Não podemos deixar cristalizar esta ideia de que o PSD ganhou as
últimas eleições. Perdeu-as porque Portugal preferiu votar declaradamente
contra o que o seu Governo representou e, sobretudo, contra o que o seu governo
fez.
Passos Coelho é um derrotado.
Será mesmo mais derrotado do que António Costa
foi, porque Portugal, na sua grande maioria, rejeitou a continuação da sua
proposta governamental depois de a viver quatro terríveis anos.
Portugal quis ver o PSD de Passos Coelho
terminantemente fora do poder. Essa é a única leitura honesta das eleições que
o Parlamento eleito cumpriu, tirando-lhe, por não ter votos suficientes, a
possibilidade de ‘levar (ainda) mais longe’ as suas receitas de empobrecimento,
por fé, desconhecimento ou medo de ‘falhar’, o que que quer que ‘falhar’ queira
dizer na linguagem de Passos Coelho.
É por isso um risco nacional vê-lo a
esgueirar-se entre os destroços do que a sua governação fez, como se nada se
tivesse passado, rumo a nova investida ao governo. Era bom que houvesse
social-democracia suficiente para não o querer. Fazer o mesmo e esperar
resultados diferentes é uma definição de loucura segundo Einstein. Voltar a ter
Passos Coelho no Governo seria muito mau. É por isso que tudo nele me lembra o
governo dele. Menos aquilo que ele quer mostrar ser agora (texto de MárioCrespo, Sol, com a devida vénia)
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