quinta-feira, março 10, 2016

Opinião: ”Então não éramos todos Charlie?”

Há cerca de um ano, fui ao Palácio da Justiça de Lisboa depor como testemunha do SOL num processo que nos era movido por um empresário. O advogado do queixoso perguntou-me, a certa altura, se achava correto termos referido o seu cliente como “um obscuro gestor” - classificação que lhe causara profundo desgosto e vergonha nos círculos próximos, razão pela qual estávamos ali em tribunal, ao qual ele pedia que condenasse o SOL a pagar-lhe uma indemnização.

Lá expliquei que a referência surgia num pequeno artigo sobre esse empresário que fora publicado na secção Cocktail (que o leitor pode encontrar na pág. 21 desta edição), onde se relatam pequenas histórias ou fait divers do mais variado tipo. E que estes, embora obedeçam às mesmas regras da verdade e do rigor dos factos que os outros artigos, são escritos de uma forma ligeira e opinativa, muitas vezes com ironia e humor. “Então mas nisso dos fait divers, acha que se pode gozar com tudo e de qualquer maneira?” - quis saber o advogado. E fez um ar de espanto quando eu respondi que sim, claro, desde que não seja insulto gratuito e grosseiro. Os visados é que podem não gostar da brincadeira, mas têm de saber conviver com a liberdade de expressão inerente a uma democracia.
Ainda pensei reforçar a posição recordando a onda de solidariedade que se levantara dois meses antes em reação ao atentado terrorista de jihadistas islâmicos contra os cartoonistas do semanário satírico francês Charlie Hebdo. Mas não o fiz porque achei um pouco despropositado comparar um caso daquela dimensão ao de um empresário que se achava o suprassumo e que se sentira ferido pelo uso da expressão “obscuro” como sinónimo de ‘desconhecido’.
 O SOL acabou por ser absolvido. Mas voltei a lembrar-me do episódio na última semana ao ver como ‘caiu o Carmo e a Trindade’ com um cartaz que o BE lançou para assinalar a lei da co-adoção por casais homossexuais: “Jesus também tinha dois pais”. Confesso que me ri e pensei “o ‘velho’ Bloco deu um ar da sua graça”.
Estava longe de esperar as reações que se seguiram. “É uma afronta aos crentes que seguem Jesus Cristo” (Manuel Barbosa, porta-voz da Conferência Episcopal); “uma ofensa gratuita à sensibilidade de muitos portugueses, crentes ou não crentes”, e “não devemos ofender os sentimentos dos outros” (Mota Soares); “não há nenhuma razão que justifique a publicação de um cartaz daquela natureza, é uma falta de respeito para todos os crentes de todas as religiões” (Fernando Negrão). Até os ‘pais’ do BE mergulharam na onda: o ‘terrestre’ (Catarina Martins) concluiu que “foi um erro” e o ‘espiritual’ (Francisco Louçã) considerou “muito discutível a oportunidade e eficácia do cartaz”.

Pode achar-se mais ou menos graça à ideia, ou que é de mau gosto um partido gozar com religião. Mas uma afronta e uma ofensa gratuita? De facto, temos muito que caminhar para sermos todos Charlie (Sol, texto dajornalista Ana Paula Azevedo)

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