Há cerca de um ano, fui ao Palácio da Justiça de
Lisboa depor como testemunha do SOL num processo que nos era movido por um
empresário. O advogado do queixoso perguntou-me, a certa altura, se achava
correto termos referido o seu cliente como “um obscuro gestor” - classificação
que lhe causara profundo desgosto e vergonha nos círculos próximos, razão pela
qual estávamos ali em tribunal, ao qual ele pedia que condenasse o SOL a
pagar-lhe uma indemnização.
Lá expliquei que a referência surgia num pequeno
artigo sobre esse empresário que fora publicado na secção Cocktail (que o
leitor pode encontrar na pág. 21 desta edição), onde se relatam pequenas
histórias ou fait divers do mais variado tipo. E que estes, embora obedeçam às
mesmas regras da verdade e do rigor dos factos que os outros artigos, são
escritos de uma forma ligeira e opinativa, muitas vezes com ironia e humor.
“Então mas nisso dos fait divers, acha que se pode gozar com tudo e de qualquer
maneira?” - quis saber o advogado. E fez um ar de espanto quando eu respondi
que sim, claro, desde que não seja insulto gratuito e grosseiro. Os visados é
que podem não gostar da brincadeira, mas têm de saber conviver com a liberdade
de expressão inerente a uma democracia.
Ainda pensei reforçar a posição recordando a onda de
solidariedade que se levantara dois meses antes em reação ao atentado
terrorista de jihadistas islâmicos contra os cartoonistas do semanário satírico
francês Charlie Hebdo. Mas não o fiz porque achei um pouco despropositado
comparar um caso daquela dimensão ao de um empresário que se achava o
suprassumo e que se sentira ferido pelo uso da expressão “obscuro” como
sinónimo de ‘desconhecido’.
O SOL acabou
por ser absolvido. Mas voltei a lembrar-me do episódio na última semana ao ver
como ‘caiu o Carmo e a Trindade’ com um cartaz que o BE lançou para assinalar a
lei da co-adoção por casais homossexuais: “Jesus também tinha dois pais”.
Confesso que me ri e pensei “o ‘velho’ Bloco deu um ar da sua graça”.
Estava longe de esperar as reações que se seguiram. “É
uma afronta aos crentes que seguem Jesus Cristo” (Manuel Barbosa, porta-voz da
Conferência Episcopal); “uma ofensa gratuita à sensibilidade de muitos
portugueses, crentes ou não crentes”, e “não devemos ofender os sentimentos dos
outros” (Mota Soares); “não há nenhuma razão que justifique a publicação de um
cartaz daquela natureza, é uma falta de respeito para todos os crentes de todas
as religiões” (Fernando Negrão). Até os ‘pais’ do BE mergulharam na onda: o
‘terrestre’ (Catarina Martins) concluiu que “foi um erro” e o ‘espiritual’
(Francisco Louçã) considerou “muito discutível a oportunidade e eficácia do
cartaz”.
Pode achar-se mais ou menos graça à ideia, ou que é de
mau gosto um partido gozar com religião. Mas uma afronta e uma ofensa gratuita?
De facto, temos muito que caminhar para sermos todos Charlie (Sol, texto dajornalista Ana Paula Azevedo)
Sem comentários:
Enviar um comentário