Por vezes sentimos isso. Pensamos neles. Mas às vezes,
outras vezes, reflectimos sobre o futuro do quarto poder. A independência dos
jornais é atributo fundamental dos regimes livres.
“A notícia da minha morte é manifestamente exagerada”,
disse um dia em entrevista Samuel Langhorne Clemens, aliás Mark Twain.
Vem isto a propósito das notícias que, sucessivamente,
nos dão conta das dificuldades vividas pelos jornais impressos do Mundo; a mais
recente proveio do dono do Indy, petit nom do “The Independent”, um jovem
jornal britânico fundado em 1986, politicamente de esquerda, economicamente
pró-mercado, editorialmente “livre de preconceitos partidários e da influência
do proprietário”, lema que ostentou na primeira pagina até 2011. Evgeny Lebedev,
o tal proprietário, anunciou há dias que “The Independent” e “The Independent
on Sunday” deixam de se publicar em papel em finais de Março. O destino: o
reforço da publicação digital.
Em Portugal, as notícias sobre a vida e morte dos jornais – ou do seu emagrecimento (também conhecido como despedimentos) – comovem pouca gente, tal a sua frequência. No ano que passou, por exemplo, o jornal “I” e o “Sol” sofreram um processo de reestruturação, com fusão de redacções e redução a um terço do número dos trabalhadores (quase todos jornalistas). E são recorrentes as notícias pondo em dúvida o futuro de jornais como o Público, que se diz dar prejuízo desde praticamente a fundação, apesar de ser (ou ter sido) um dos jornais de maior qualidade publicados em Portugal; ou o Diário de Notícias, ao sabor da mudança dos directores, a recordar-nos nomes como Augusto de Castro, durante o Estado Novo, o director-adjunto José Saramago em 1975, e ainda Cunha Rego, Mário Mesquita, Mário Bettencourt Resendes.
Entre os raros títulos aparentemente imperturbados
estão os desportivos, que parecem imunes a ventos, tempestades e mercado; ou
talvez não, talvez seja sobretudo o mercado que os garante, assente no fenómeno
chamado futebol. Dos outros, generalistas ou não, destacam-se o Expresso e o
Correio da Manhã (CM): pode atribuir-se o sucesso do Expresso à tradição, com
muita gente a manter o hábito de sair de casa sábado de manhã para comprar um
exemplar, guardado e lido (às vezes) ao longo da semana; quanto ao CM releva a
natureza das notícias, banhadas em sangue e sexo (para além de se tratar de um
jornal muito bem feito do ponto de vista jornalístico). Mas mesmo esses, com
tempo e na proporção inversa do predomínio do digital, correm sérios riscos.
Os jornais não são produtos como os outros. A sua
matéria prima principal não é a terra, os produtos químicos, minerais ou
vegetais. São os factos: os acontecimentos políticos, económicos, sociais; a
vida das pessoas; os acidentes e incidentes do dia a dia. Os jornalistas
investigam, analisam, sintetizam e transformam esses factos em notícias. Os
leitores consomem-nas com os olhos, com as mãos e, sobretudo, com o cérebro e o
coração. Os jornalistas são trabalhadores do concreto da vida, que
desmaterializam e transformam em alimento para o espírito.
Assistimos nos últimos meses, com pena e preocupação,
ao estertor de um título importante do jornalismo económico em Portugal: o
Diário Económico (e o seu prolongamento audiovisual, o Económico TV). Como
acontece com muitas empresas em dificuldades, chegam-nos ecos de salários em
atraso, do passivo, de penhoras, da falta de compradores; explicam-nos que o
fim do BES e os problemas da PT “secaram” o financiamento da Ongoing, dizem-nos
que o único potencial comprador exige um corte substancial da dívida e uma
prévia reestruturação do jornal (isto é… despedimentos).
Ouvimos e lemos o jornal, feito por profissionais com
salários em atraso e um futuro pessoal sombrio, lemos as notícias que escrevem
e pensamos no rumo que as coisas têm tomado. Por vezes, quando lemos textos
pungentes deles, ou sobre eles, apelos desesperados, dignos e apaixonados,
profundamente humanos, que nos chegam quase sempre, ironicamente, por via
digital – em redes sociais, blogs, jornais electrónicos – sentimo-nos
solidários com essa gente corajosa e digna, que continua a escrever por dever
de ofício e imperativo de consciência, a informar-nos, a transformar os factos
em notícias.
Por vezes sentimos isso. Pensamos neles. Mas às vezes,
outras vezes, reflectimos sobre o futuro do quarto poder. A independência dos
jornais é atributo fundamental dos regimes livres. Sem liberdade de imprensa,
nenhuma democracia é digna desse nome. É certo que há, como desabafou uma amiga
minha – ex-jornalista desiludida – maus jornalistas, maus jornais, má
informação. Jornalistas venais, que fazem fretes, que servem patrões com
agenda. Como há, sabemo-lo bem, excelentes jornalistas, excelentes jornais,
excelente informação. Jornalistas honestos, de camisola vestida com os dizeres
veritas omnia vincit (a verdade acima de tudo).
Mas independentemente da qualidade e da honestidade
dos profissionais, o risco do desaparecimento dos jornais é real. Sejamos
claros: é dos jornais impressos que se trata. O Indie não faz senão seguir
exemplos anteriores, como o do Huffington Post ou, entre nós, deste excelente
Observador. Não nos enganemos pois, o que se está a passar obedece á inevitável
lei da mudança, propulsionada pela evolução tecnológica, induzida pela
transformação dos hábitos dos leitores. E continuará sempre a haver espaço para
as velhas tecnologias. Não deixará completamente de haver notícias escritas
sobre papel impresso. Vídeo killed the radio star, cantaram em 1979 os Buggles,
não sem razão. Mas ouvir uma canção com ouvidos de ouvir, despojada da distracção
frenética das imagens dos modernos videoclips, separa o trigo do joio, uma
grande voz duma figura animada que canta.
Destruição criativa, chamou-lhe Shumpeter.
Jornais e jornalistas terão de se adaptar ao
maravilhoso Mundo novo digital sem pôr em causa a verdade e a qualidade das
notícias. Também nessa nova realidade, os bons jornalistas, os que investigam e
se interrogam, servindo a verdade que vence acima de tudo, serão naturalmente
separados dos maus, dos venais, pelo julgamento dos leitores. O tempo é de
transformação e de adaptação, esse é o desafio. Mas o tempo continua a ser da
qualidade, do profissionalismo e da verdade.
Como bem frisou o já citado Mark Twain, aliás Samuel
Clemens: “para aqueles que têm apenas um martelo como ferramenta, todos os
problemas parecem pregos” (texto de Paulo de Almeida Sande, professor do INSTITUTODE ESTUDOS POLÍTICOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA, Observador com adevida vénia)
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