terça-feira, janeiro 27, 2015

Passos não queria mais BCE, mas foi (quase) sempre cauteloso

"O BCE usou a bazuca e o PS disparou sobre ele. O Observador foi rever o que disse Passos nos últimos anos e procurar os factos, para perceber quem tem razão em quê.
O Banco Central Europeu lançou a “bazuca” para a economia europeia, mas acertou em cheio na política portuguesa. António Costa acusou o primeiro-ministro de ter mudado de opinião por antes ser contra a compra de dívida pública pelo banco central e agora aplaudir. Tanto o líder socialista como deputados no Parlamento lembraram declarações do líder do Executivo como se fossem contraditórias com a posição atual. Mas afinal o que disse o primeiro-ministro sobre o papel do Banco Central Europeu?
O Observador recorda as frases-chave do primeiro-ministro sobre o BCE invocadas pelo PS e foi rever o contexto em que foram proferidas. A nossa conclusão? Passos nunca foi adepto de um papel mais interventivo do BCE, mas foi quase sempre cauteloso na escolha das palavras para não se comprometer, caso isso viesse a acontecer. A evolução das circunstâncias mostrou que o BCE evoluiu num sentido que não era do agrado do PM, mas ainda não chegou ao que defendem os seus críticos.
Maio de 2011
O que disse Passos Coelho?
“Se o Banco Central Europeu tivesse por função resolver o problema dos países indisciplinados, imprimindo mais euros, pura e simplesmente, seria um péssimo sinal que daríamos a toda a gente. Estaríamos a dizer a todos os países na Europa façam a execução orçamental sem rigor, gastam o que não têm, não se preocupem com a disciplina dos vossos orçamentos, gastem o que for necessário, que depois o Banco Central Europeu imprimirá mais DINHEIRO para todas as necessidades. Ora na Europa isso já aconteceu há uns anos, há umas largas dezenas de anos, e a Europa viveu uma guerra por causa disso”.
O contexto da frase
Portugal tinha acabado de pedir o programa de ajustamento. Era o terceiro da linha depois da Grécia e da Itália e a pressão estava nesta altura também virada para uma queda em dominó que poderia arrastar a Espanha e a Itália. E Passos Coelho era aqui o candidato a primeiro-ministro, que queria passar a imagem de bom aluno (versão aliás que foi defendendo enquanto durou o programa de ajustamento). Por esta altura, as tensões no mercado agravavam-se e o BCE só viria a tomar uma iniciativa no ano seguinte.
Quando Passos Coelho defendeu esta posição, no Banco Central Europeu mandava ainda Jean-Claude Trichet, que por esta altura estava a subir as taxas de juro (duas vezes em três meses) apesar das tensões crescentes na zona. O Super Mario (Draghi) só assumiria funções no final do ano e, oito meses depois, em julho de 2012, o novo presidente do BCE prometeu “fazer tudo, dentro do mandato, para salvaguardar a moeda única”, o que equivaleu a diminuir o risco das dívidas públicas e afastar a implosão da moeda única. Falar, só, chegou. O programa de OMT nunca foi sequer usado, mas existe e isso tem sido suficiente.
Mas quando Passos diz esta frase, ainda em campanha para as eleições legislativas, este era um cenário pouco provável para o primeiro-ministro e mais afastado ainda estava ainda o cenário de compra de dívida pública e privada como acabou de anunciar esta semana Mario Draghi. E como nessa altura o mote de Passos era que “Portugal não é a Grécia”, evitava a questão mais técnica e falava sempre em financiamento de “países indisciplinados”. Ou seja, Passos era contra o financiamento de défices excessivos de países que não cumprissem as regras, numa altura em que estava apostado em mostrar aos parceiros europeus que Portugal ia cumprir com as metas acordadas no Memorando de Entendimento caso fosse eleito.
Dezembro de 2011
O que disse Passos Coelho?
“A ideia de que o BCE deveria ser um prestamista de última instância de cada Estado não está no consenso europeu”
“Muitos outros países não concordam com essa visão, não é só a Alemanha. Uma coisa é incluir, na ideia de intervenção do BCE, mais do que a estabilidade dos preços, que é o único mandato que o BCE tem, e o BCE tem estado um pouco além desse mandato, na medida em que também tem privilegiado a estabilidade financeira. Isso é diferente de dizer que o Banco Central Europeu deve ser uma espécie de banqueiro dos Estados europeus. Nós, na Europa, temos agora 28 países. Se o BCE, que deve gerir a moeda de 17 desses países, tivesse de ser o banqueiro de cada um destes Estados, na prática, o que o BCE estaria a fazer era a financiar os défices destes Estados. Isso não está no consenso europeu, e devo dizer que também não concordaria com isso. Não significa que o BCE não possa ter um papel importante” – In Correio da Manhã
O contexto da frase
Por esta altura, Mario Draghi tinha acabado de anunciar outros estímulos (LTRO, cedência de liquidez à banca a três anos) e teve de contrabalançar esse anúncio com palavras de contenção, não dizendo nessa fase que iria avançar com a compra de dívida. Até porque, a situação não o exigia. Nessa altura, o problema maior não era a baixa inflação ou o risco de deflação (como agora), mas sim a fragmentação financeira. Ou seja, a divergência de custos de financiamento de Tesouros e empresas dos diferentes países da mesma união monetária. E foi a essas medidas que Passos se referia, quando nesta entrevista ao Correio da Manhã dizia “estar bastante confiante” nesses novos mecanismos.
Com estes novos mecanismos Passos concordava. Só não concordava (e aqui repete a fórmula) que o BCE financiasse diretamente os défices dos Estados, porque isso não estava no mandato do banco central. Apesar de não se estar a referir à mesma medida que o BCE lançou esta semana, pode dizer-se que Passos não gostava de um papel mais ativo do BCE, mas escolhia as palavras a dedo, constatando muitas vezes, e fugindo à opinião de outras para evitar títulos nos jornais que fizessem ecos nos mercados, uma vez que nessa altura estava ainda nos primeiros seis meses de mandato e de Memorando de Entendimento.
Junho de 2012
O que disse Passos Coelho?
“Se o sr deputado, como o PS tem vindo a expressar, entende que o BCE deve atuar em mercado secundário com um programa mais intenso de compra de dívida soberana dos diversos países. Se entende que o BCE, com papel mais ativo deve ser o financiador dos défices gerados pelos Estados, nessa medida sendo portanto prestamista de ultima instância de cada soberano da zona euro.
Se é isto que o senhor deputado entende, deixe-me dizer-lhe que não concordo e não preciso de pedir licença a ninguém, nem em Portugal nem na Europa para dizer aquilo que penso. E digo-lhe porque não aceito essa visão porque em primeiro lugar não cabe ao BCE, em circunstância nenhuma, exercer um papel de monetização dos défices europeus. Em segundo lugar, porque o BCE é a instituição ao nível da União Europeia com mais credibilidade e com mais força para atuar em momentos tão críticos como o que atravessamos. Qualquer descredibilização do seu papel, face ao que são os seus objetivos e ao que é o seu mandato, corresponderia ao fim do euro e da União Europeia tal como a conhecemos.
Em terceiro lugar (…), dizia que é importante que possa preservar a sua independência e credibilidade neste tempo difícil. Precisamos de garantir que a política monetária, tal como tem vindo a ser executada pelo BCE, não fica imobilizada no sistema financeiro e é eficaz nos mecanismos de transmissão à política económica e à economia. E para que isso aconteça hoje é claro que precisamos de outros instrumentos de que não dispúnhamos até aqui. Um desses instrumentos, talvez o mais poderoso, é, sem dúvida a União Bancária. Sobre a matéria de princípio há uma questão que pode ser controversa, mas que deve ser discutida: há outros bancos centrais no mundo que funcionam como prestamista de última instância para o eu soberano. Há sim senhor, mas na Europa não há um soberano, há 17 soberanos”
O contexto
A declaração foi feita no Parlamento a um mês de o novo presidente do BCE prometer “fazer tudo, dentro do mandato, para salvaguardar a moeda única”. Passos discutia com Seguro – um dos defensores de uma compra plena de dívida do BCE – e de uma assunção de riscos comunitária – se o BCE devia ou não dar um passo em frente e defender a zona euro, que estava na altura de novo em forte agitação. Precisamente a que levou às palavras de Draghi.
Nesta frase, mais do que noutras, percebe-se que Passos é fortemente contrário a uma intervenção do BCE para além da que estava a ser construída com a União Bancária. Nesse sentido, o tempo acabou por levar o BCE a ir mais longe do que defendia o primeiro-ministro português – sobretudo esta semana. Mas não tão longe como defendia Seguro – e depois António Costa no PS, que implicava um plano com os riscos assumidos pelo BCE.
Um mês depois deste debate, o programa anunciado por Draghi (OMT) era posto como condicional. Dito de outra forma, a que o país visado tinha de estar sob programa – sempre com medidas impostas de correção das contas pelo Eurogrupo. Para evitar desvios e responsabilizar o Eurogrupo.
Neste novo plano, anunciado agora em janeiro, o BCE vai muito mais longe: avançará para compra de dívida pública sem essa condicionalidade. Mas não deixou de impor limitações.
Limitou os riscos do BCE a 20% da dívida que fique nos seus ativos, sendo 80% assumidos pelos bancos centrais de cada país;
O plano de compras não é para todos – podem ficar excluídos os países com rating abaixo de nível de investimento, dependendo da avaliação que o BCE fizer dos seus compromissos. Draghi deixou este ponto em aberto, permitindo-lhe uma decisão país a país e forçando os vários estados-membro a manterem fidelidade a um programa de reformas – no sentido da flexibilização e abertura dos mercados internos.
De resto, o BCE deixou claro na quinta-feira que o objetivo deste plano não é financiar défices, mas dar um impulso à economia e dar um impulso à inflação. E não há mais nada que possa comprar na zona euro para aumentar o seu balanço nas quantidades necessárias para atingir este objetivo.
De resto, torna-se mais evidente que o objetivo do BCE não é financiar défices quando se olha para o plano em detalhe: até a Alemanha, que não tem um problema de défice, terá muita dívida comprada. Melhor dizendo, a compra será proporcional à quota de capital que cada banco central tem no BCE, levando a que a de Portugal seja muito reduzida quando posta em proporção. Sendo também verdade que, indiretamente, os países vão conseguir com isto financiar os défices mais baratos.
Maio de 2014
O que disse Passos Coelho?
“Não defendo que o BCE precise de instrumentos diferentes ou de um mandato diferente para cumprir a sua principal missão que é a de manter a estabilidade, estabilidade financeira na Europa nomeadamente nos mercados financeiros.
“A política de ‘quantitative easing’ não é uma política normal para o BCE“,
“Jornalista – Não quer ver “quantative easing” pelo BCE. Quer ver o BCE a ‘comprar empréstimos’ a pequenas e médias empresas?
– Bem, eles têm no seu mandato a possibilidade de o fazer. Se necessário. Se necessário. E o BCE já mostrou sinais que se o risco de deflação crescer, nos próximos dois meses… algumas políticas diferentes podem ser adotadas
– E você receberia isso de bom grado?
– Claro, não é surpreendente que o BCE possa adaptar a sua resposta à situação real. Mas eu não reivindico um papel mais ativo do BCE para a economia real. E porquê? Porque é importante que a economia europeia consiga recuperar pelos seus próprios meios”. – Entrevista à CNBC
O contexto da frase
Foi a primeira vez que Passos Coelho se referiu aos mecanismos agora adotados. E, com o país a sair do Memorando de Entendimento, o primeiro-ministro tentou escolher as palavras neste assunto. Não disse preto no branco ser contra esta medida, mas também nunca foi dos que a defendeu. Aliás, sempre defendeu que os mecanismos que o BCE tinha ao seu dispor eram mais do que suficientes.
Mas errou no diagnóstico. Em maio dizia que o BCE não precisaria de mais instrumentos para cumprir o mandato (controlar a inflação), mas precisou, afinal de contas, de recorrer a medidas a que Passos Coelho chamou “não normais” (o jargão da política monetária prefere não convencionais) para tentar combater o risco de deflação" (fonte: Observador)