“Os maçons já estão dentro do templo e é ao som de Orfeu e Eurídice, a
dança dos espíritos abençoados do compositor austríaco Christoph Willibald
Gluck, que as cerimónias da loja começam. O venerável mestre está vestido como
todos os outros – fato e gravata escuros, camisa e luvas brancas –, mas
distingue-se pelo colar que tem ao pescoço, com uma “estrela flamejante”
bordada. À cintura, tem um avental com símbolos maçónicos. Entre 2008 e 2009, o
irmão Nuno Vasconcellos, presidente do grupo Ongoing, foi o venerável mestre da
polémica loja secreta Mozart 49, substituindo no cargo Jorge Silva Carvalho,
então director do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e hoje
quadro da Ongoing.
Como manda a lei interna maçónica, além de dar orientação espiritual aos
irmãos, Vasconcellos escolheu também a quase totalidade dos 14 oficiais desta
loja poderosa, reerguida no fim de 2006. E interveio decisivamente na iniciação
de novos maçons, nos quais se incluirá Luís Montenegro, hoje líder parlamentar
do PSD.
Há cerca de três anos e meio, o então deputado do PSD eleito pelo
círculo de Aveiro era um político discreto – só em Junho de 2011 foi escolhido
para um dos lugares mais poderosos do Parlamento; e só há uma semana foi
exposto publicamente como maçon na sequência da auditoria parlamentar aos
serviços secretos e ao papel do irmão Jorge Silva Carvalho em vários
escândalos, como o do alegado acesso ilegal de espiões à facturação telefónica
de um jornalista do Público.
A SÁBADO teve acesso a documentos internos secretos da Grande Loja Legal
de Portugal (GLLP) que descrevem o objectivo da loja Mozart e de duas outras –
a Mercúrio e a Brasília: apostar na “intervenção social e política”, no
“recrutamento de jovens quadros promissores” e na “discrição”.
Nos mesmos documentos, são ainda detalhados vários rituais. Em 2008,
quando Luís Montenegro foi iniciado na maçonaria, a loja Mozart reunia-se numa
sala em forma de rectângulo, orientada de oriente para ocidente e coberta por
um tecto azul com constelações. O oriente do templo estava ocupado por um
estrado ao qual se chegava subindo três degraus. No centro, o venerável mestre
Nuno Vasconcellos sentava-se numa cadeira em frente a uma mesa triangular
tapada por um fino dossel vermelho com franjas douradas. Em cima tinha a carta
constitutiva da loja, uma “espada flamejante”, o malhete e um candelabro com
uma das três luzes acesas. Mesmo assim via-se bem um delta luminoso com letras
hebraicas que tinham de ser lidas da direita para a esquerda: “Iod, Hé, Vau,
Hé.”
Por trás da cadeira do venerável mestre estavam representadas as imagens
do Sol (à direita) e da Lua (à esquerda). Abaixo do estrado, encostado aos três
degraus, havia um Altar dos Juramentos, que tinha três objectos fundamentais
para iniciações como as de Luís Montenegro: a Bíblia, o esquadro e o compasso.
No início da cerimónia de iniciação, quando ainda está fora do templo, o
futuro maçon ouve as palavras bruscas do venerável mestre: “Meus irmãos!
Armem-se das vossas espadas: está um profano à porta do templo.” Todos
obedecem, pegando na “espada flamejante” com a mão esquerda. Já lá dentro, um
dos “irmãos” (o guarda-interno) aponta a sua espada ao coração do iniciado.
“Trata-se de uma espada sempre erguida para castigar o perjúrio. É o símbolo do
remorso que rasgará o seu coração se se tornar traidor à fraternidade em que
pretende ser admitido”, avisa-o o venerável. Pouco depois, explica ainda melhor
o principal dever de um maçon: o “absoluto silêncio sobre tudo o que puder
ouvir ou descobrir entre nós e sobre tudo o que vir, ouvir ou souber depois” e
nunca revelar a identidade dos irmãos.
Foi precisamente a vontade de secretismo que fez rebentar o escândalo na
última semana, por causa do trabalho da Comissão dos Assuntos Constitucionais,
na Assembleia da República. Em causa esteve sobretudo a divulgação, pelo jornal
Público, do relatório de trabalho do PSD e de uma versão posterior que já
juntava os contributos do CDS, do PCP e do BE (o PS recusou fazer um relatório
por defender que não devem ser públicas as matérias sobre os serviços secretos
tratadas na Comissão). A diferença? Na versão conjunta já não constavam as
suspeitas iniciais do PSD, que reproduziam as declarações feitas no Parlamento
por Marques Júnior, presidente da Comissão de Fiscalização dos Serviços
Secretos, sobre um perigoso triângulo que envolveria a maçonaria, os serviços
secretos e empresários.
Na ausência de um consenso entre os partidos, o PSD manteve as suas
conclusões, segundo as quais há “indícios e suspeitas” do envolvimento de Jorge
Silva Carvalho e de outros espiões em “grupos de pressão” ou “sociedades
secretas, nomeadamente ramos da maçonaria”; e que esse envolvimento afecta a operacionalidade,
“a credibilidade e o prestígio dos serviços de informações”, até porque também
terão sido identificadas partilhas de informações do SIED com o grupo Ongoing.
Na sequência destas notícias, foram divulgados pela comunicação social
vários nomes de outros membros da maçonaria, como os líderes parlamentares do
PS, Carlos Zorrinho (cuja entrada no Grande Oriente Lusitano tinha sido
revelada pela SÁBADO em Junho de 2007), e do CDS, Nuno Magalhães.
Já em Dezembro de 2007 e Janeiro de 2008, dois artigos de investigação
da SÁBADO revelaram que havia vários espiões que eram “irmãos” de políticos do
PS e do PSD, de empresários e de jornalistas em lojas maçónicas da Grande Loja
Legal de Portugal e do Grande Oriente Lusitano (GOL). Três deles estavam na
Mozart e por lá se mantiveram até hoje, obedecendo a veneráveis mestres como
Nuno Vasconcellos: Jorge Silva Carvalho, do SIED, João Alfaro, do SIS, e F. R.,
director de segurança do SIS e do SIED (a SÁBADO revela apenas as iniciais de
todos os que ainda trabalham nos serviços de informações, uma vez que as suas
identidades são consideradas segredo de Estado). Os dois primeiros espiões
trabalham agora na Ongoing de Nuno Vasconcellos, que também contratou dois
inspectores da PJ em licença de vencimento de longa duração.
Para evitar que os seus membros sejam expostos, nos últimos anos a
maçonaria tem adoptado várias normas de segurança – cada vez mais apertadas. Os
documentos internos a que a SÁBADO teve acesso mostram que, num esforço de
manter a sua identidade em segredo, os nomes verdadeiros dos “irmãos” foram
substituídos pelas iniciais. Em 2006, o decreto de fundação da loja Brasília
falava expressamente do espião Jorge Silva Carvalho e dos actuais deputados
socialistas Duarte Cordeiro e Rui Paulo Figueiredo; mas em 2008 uma lista dos
vários veneráveis mestres já identificava o líder da Mercúrio apenas como R. P.
F. (Rui Paulo Figueiredo) e o líder da Mozart como N. V. (Nuno Vasconcellos).
Em alguns documentos do GOL, as iniciais não são consideradas
suficientes para manter o segredo – por isso, são usados nomes de código dentro
das lojas. Há referências, por exemplo, a “Egas Moniz”, a “Fernando Pessoa” ou
a “Platão”. O cantor Vitorino é o “Mestre Hélio”.
Há iniciações tão secretas que nem os irmãos as conhecem. Uma fonte
interna garante à SÁBADO que Isaltino Morais, por exemplo, entrou na GLLP sem
que quase ninguém soubesse: “O próprio grão-mestre Trovão do Rosário chegou a
dizer a ‘irmãos’ que era boato, mas depois confirmou-se, sem que o nome de
Isaltino Morais fosse afixado” num quadro na parede da sede da GLLP, como é
comum com todos os outros novos maçons.
Em alguns momentos, as preocupações de segurança chegaram ao extremo. O
GOL aprovou esmagadoramente na Grande Dieta (o parlamento da maçonaria onde
estão representadas as lojas) a criação de uma espécie de serviços secretos
para averiguar as fugas de informação. A SÁBADO não sabe se o projecto se
concretizou, mas já em 2010 foi nomeada outra comissão, integrada pelo maçon
Adérito Serrão, presidente do Instituto de Meteorologia, para também investigar
fugas de informação. Uma das recomendações foi evitar ao máximo o uso do email,
sobretudo no envio de documentos confidenciais do GOL para listas colectivas de
endereços electrónicos – foi precisamente um desses emails que o jornal Público
revelou na semana passada, expondo os nomes de alguns dos alegados mais de 40
irmãos da loja Mozart.
Nas últimas eleições para grão-mestre do GOL, um dos candidatos colocou
o seu programa eleitoral num site que apenas permitia o acesso uma única vez
através de um código secreto. E cada visitante só conseguia estar no site
durante alguns minutos e não tinha a possibilidade de imprimir nem de gravar
ficheiros.
Os locais de reunião também são uma preocupação de segurança. Os
elementos da loja Mozart juntavam-se todas as primeiras segundas-feiras de cada
mês, inicialmente em casa do então grão-mestre Trovão do Rosário; depois, no
edifício degradado da sede da GLLP, em Alvalade; e finalmente no Bairro Alto,
na Rua João Pereira da Rosa, n.º 14, cuja fachada é a Associação Cultural
Albert Pike. Mais tarde, a loja, como acontece com outras, passou também a
reunir-se em hotéis, onde os maçons montavam templos improvisados: o Ibis, o
Villa Rica, o VIP Zurique, o Marriott (o antigo Penta), em Lisboa; o Solplay,
em Oeiras; e o Hotel Costa de Caparica são apenas alguns dos preferidos dos
maçons.
Os encontros começam após a chegada dos “irmãos”, que trazem consigo
pastas pretas onde transportam aventais, estandartes e colares. Tudo é feito na
maior discrição, mesmo quando se juntam dezenas de veneráveis mestres que
representam as várias lojas. Numa acta do conselho de veneráveis da GLLP,
realizada no Hotel Zurique a 24 de Junho de 2006, lê-se que o grão-mestre Trovão
do Rosário abriu os trabalhos com os 47 veneráveis dizendo que o encontro
ocorria em “instalações devidamente ocultas de profanos”.
Anos depois, a SÁBADO conseguiu fotografar e filmar de forma não
autorizada a entrada de dezenas de maçons para a assembleia geral da Grande
Loja Legal de Portugal, na sede de Alvalade, em Lisboa. As imagens publicadas
nesta edição mostram os irmãos a chegar com aventais e estandartes debaixo do
braço, a aparecer à janela vestidos de forma ritual e a falar uns com os outros
antes da cerimónia (o vídeo pode ser visto em www.sabado.pt).
A SÁBADO tinha ainda fotografado uma outra reunião, em Março de 2007, no hotel
VIP Zurique, em Lisboa” (Por António José Vilela da Sábado,
texto publicado em Janeiro de 2012)