terça-feira, setembro 30, 2014

Opinião: "Primárias, uma "falsa boa ideia"?"

"O título não é meu. Fui encontrá-lo num artigo do Le Monde , escrito por  Bernard Lamizet,  professor  de estudos políticos, pouco antes das primárias efetuadas, em outubro de 2011, para a escolha do candidato do PS francês às presidenciais seguintes e que resultaram na escolha de Hollande. Foram as primeiras realizadas em França para aquele cargo.  Lá chamaram-se "primárias cidadãs" e foram abertas a "todos os que se reconhecessem nos valores da esquerda e da República".
O ponto de interrogação, esse sim, é meu. Como muitos outros portugueses, a minha primeira tentação é concluir que o resultado das primárias agora efetuadas no PS é positivo. A vitória de António Costa, sobretudo pela dimensão, deixa-o, inquestionavelmente, em melhor posição para disputar as próximas legislativas. Se bem que, nas últimas autárquicas, já tenha sido reeleito com mais de 50% dos votos.
Mas, analisando agora os resultados. Dos 248 573 inscritos, cerca de 150 mil, ao que foi divulgado, eram simpatizantes. Mas, no dia 28, apareceram a votar 174 770. Isto é, apesar da renhidíssima disputa - e da experiência inédita - cerca de 30% dos potenciais eleitores ficaram pelo caminho. E, no total de votos, quantos eram de simpatizantes? Até que ponto modificaram o resultado que dariam umas simples eleições diretas internas? Sejam quantos tenham sido, valeram sobretudo pela dinâmica criada: Costa já é um vencedor mesmo antes de o ser.
Retiremo-nos agora deste caso concreto, até porque algumas figuras conhecidas do PSD já vieram a público dizer que, depois desta experiência, o PSD dificilmente poderá escapar a adotar o mesmo sistema. Parece provado que as pessoas aderem.
Assim, a primeira vantagem das primárias seria combater os níveis de abstenção que, em Portugal como noutros países da Europa, se têm tornado elevadíssimos. Importe-se então esta solução "à americana". Mas sem esquecer que o sistema partidário é bastante diferente, com um leque partidário mais curto do que o europeu. E, já agora, olhando para as taxas de participação eleitoral nos EUA.
Em 1996, Bill Clinton - por sinal um político ainda hoje bem popular - foi re-eleito por 49,08% dos americanos em idade de votar, quando o escândalo Monica Lewinsky vinha ainda longe. Manda a verdade que se diga que, entre os eleitores registados, a taxa de participação foi de 65,97%. Mas o peso simbólico de escolher o presidente dos EUA, o único político eleito pelos 50 estados, não é comparável à eleição de um presidente europeu. E, já agora, existem nos EUA vários tipos de primárias nas eleições presidenciais, e nem todas são abertas. Depende dos estados.
Voltando ao artigo a que fui buscar o título, coloca uma questão pertinente. Se as eleições passarem a ser abertas a quem entender, "para que vão servir os partidos políticos?". Até agora têm sido - ou foram criados para isso - o espaço onde se debatem projetos políticos. E o autor receia que este tipo de eleições contribua para que "o debate entre projetos seja substituído pelo antagonismo entre os candidatos". Ou, dito, de outra forma, corre-se o risco de uma "despolitização dos debates públicos". Ainda maior do que hoje.
Temos bem presentes os debates entre Costa e Seguro, para nos lembrarmos de que, no final, os analistas eram quase unânimes em que, praticamente, não se verificavam diferenças entre os projetos dos dois candidatos. Aliás, eles próprios ironizavam sobre a semelhança de cor das suas gravatas.  Mesmo o projeto político de Costa passava, no essencial, por provar que ele era melhor do que Seguro. E era.
Uma ligeira pesquisa leva-me a concluir que têm sido Partidos Socialistas a introduzir este tipo de eleições. Foi assim, pelo que vi, em França, ou em Espanha. Aqui, Rui Tavares reivindica a inovação para o Livre, nas últimas europeias. Mas isso não me parece comparável a que um dos maiores partidos portugueses tenha adotado o sistema para a escolha do primeiro-ministro. E porque terão sido os Partidos Socialistas a dispor-se a essa mudança? Porque são mais abertos do que os outros à sociedade? Eventualmente. Mas são também partidos que parecem em dificuldade de re-encontrar precisamente o seu projeto político. Basta lembrarmo-nos da chamada Terceira Via, importada dos EUA para a Europa por Tony Blair e, depois, tão replicada.
Que, entre nós, a vontade de participação das pessoas é cada vez maior, sente-se. Está aí. Basta vermos os resultados que movimentos de cidadãos (ou algo apresentado como isso) conseguiram. Mas, quando ouço as razões de pessoas, incluindo das minhas relações, para se absterem em atos eleitorais, nunca lhes ouvi a pretensão de participarem nas escolha dos lideres partidários. Ouço, sim, o descontentamento com os partidos, muitas vezes considerados, com mais ou menos justiça, "todos iguais". E o descontentamento com uma classe política que, em muitos casos - não todos, como é óbvio - usa a despropósito a expressão de "serviço público", quando se refere aos lugares que ocupa. A soma de escândalos sobre tráfico de influências que vêm a público aí estão para o demonstrar.
Não creio que o sistema de primárias agora levado a efeito pelo PS vá remediar as questões de fundo. Mas, uma vez passado o entusiasmo desta primeira experiência, se pelo menos conseguirem envolver mais pessoas no debate político, então que venham mais cinco. Ou as que forem necessárias" (texto da jornalista da Visão, Emília Caetano, com a devida vénia)