Segundo
o Jornal I, “os directores das faculdades de Medicina do Porto ou da Nova de
Lisboa defendem entrevistas ou provas de aptidão para seleccionar candidatos. Horácio
é famoso por defender Roma de invasores estrangeiros. A. Verdadeiro; B. Falso,
C. Não sei. Que tem esta pergunta a ver com medicina? Se não sabe bem se
Hipócrates era grego ou romano, esqueça (até porque era grego). Aparece num
teste obrigatório para os candidatos a Medicina no Reino Unido - devem
conseguir extrair a resposta de um texto de enquadramento. Há também desafios
de descodificação ou de pensamento abstracto como os puzzles dos testes de QI e
dilemas clínicos. Todos os anos, os alunos que terminam o secundário têm o
Verão para fazer o teste de aptidão clínica (UKCAT), requisito obrigatório em
26 das 31 universidades que oferecem o curso. Sem este exame, não podem fazer a
candidatura, mesmo com um currículo irrepreensível e ainda que a maioria das
escolas diga que a prova pesa pouco na selecção, que inclui também entrevista.
Em Portugal a entrada baseia-se só nas notas. Será suficiente?
A
discussão tem andado esquecida, mas quem está na profissão lembra que foi alvo
de muitos debates no final dos anos 80. José Caldas de Almeida, director da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, recorda
experiências com entrevistas de selecção de candidatos em Lisboa, algo que hoje
só acontece no curso do Algarve para licenciados. "Sou um defensor de
entrevistas: as qualidades para ser um bom médico não se limitam ao
conhecimento. A razão para nunca se terem generalizado é basicamente uma: com o
número de candidatos sempre a subir tornava-se impossível montar um sistema
fiável e justo."
O
argumento a favor de uma selecção diferente é que as qualidades exigidas a quem
quer ser um bom aluno e mais tarde um bom médico não se limitam ao que se
aprende nos livros. António Vaz Carneiro, professor da Universidade de Medicina
de Lisboa, diz que essa é a parte simples do problema. A complexa é que, se
Medicina tem 1517 e a média mais alta, é por ser o mais procurado.
"Ninguém sabe ao certo quantos candidatos temos, mas são sempre milhares.
Isso criaria sempre um problema de selecção. Podemos experimentar vários
modelos, mas ficámo-nos pela nota. É o processo que temos, longe de ser o
ideal. É possível mudar mas seria caro. Quantos avaliadores, psicólogos e
analistas seriam precisos?"
A
ideia é partilhada pelo director da Faculdade de Medicina do Porto. Para José
Agostinho Marques, a selecção dos estudantes é inadequada, por não incluir
critérios vocacionais. "Houve sucessivas comissões para estudar o assunto
e avançar propostas. Nunca houve consenso suficiente para vencer as
resistências", lembra. Até por implicar uma mudança de paradigma: o modelo
de acesso às universidades públicas baseado nas notas.
Além
do número de candidatos, a ideia esbarraria ainda numa "desconfiança"
habitual entre os portugueses, aponta Marques. Vaz Carneiro concorda. "Na
nossa cultura tem sido difícil aceitar a idoneidade quando se trata de avaliar
características subtis." Para Telmo Mourinho Baptista, bastonário dos
psicólogos, uma avaliação psicológica e motivacional prévia seria importante,
ainda mas não apenas para os médicos. "Seria útil para todas as profissões
que impliquem contacto humano." Contra a mudança, reconhece, pesa o
"preconceito" de que este tipo de análise é menos objectiva.
"São mais bem seleccionados quando existe uma competição desenfreada por
décimas? As profissões de saúde têm responsabilidades próprias que justificam
essa avaliação e vemos que as queixas dos doentes muitas vezes não são do foro
técnico. O receio parece só se encontrar neste campo: é pacífico que um
candidato a cursos que impliquem motricidade faça provas físicas." A
inexistência de uma cultura de interdisciplinaridade é outro obstáculo:
"Não é a psicologia a seleccionar, é um contributo. As ferramentas existem
para se complementarem, mas por cá pensa-se que que é entregar a tarefa a
alguém."
NA
PRÁTICA, O QUE MUDARIA?
Para
Vaz Carneiro, ter "os cavalos de corrida" na sala de aula não traz
dissabores. "São trabalhadores, têm boa memória", descreve. "São
menos de 1% os alunos que vimos a perceber que só ali estão por causa dos pais
ou pela eventual remuneração ou segurança da profissão." Mas a medicina é
uma profissão cada vez mais exigente, pela complexidade técnica dos sistemas de
saúde, mas também por haver mais informação dos doentes e responsabilização
profissional. E as notas nada dizem sobre o estofo psicológico nem garantem os
melhores dos melhores. "Eu iria mais longe e abriria as vagas a alunos
estrangeiros." Para já, sem entrevistas ou testes adicionais, 96% dos
alunos concluem com sucesso a formação. A mesma experiência tem Marques. O
último estudo no Porto sobre abandono é de 2008 e apurou uma taxa de 1,8%,
valor que o director diz "não convidar a arriscar mudanças".
E
na prática, safam-se? Vaz Carneiro admite que mais que desconforto ou pouca
resistência, a principal dificuldade dos candidatos a médicos nos primeiros
anos é organizar o tempo e ter pensamento crítico. Se serão bons profissionais,
depende da vocação mas também da formação e do acompanhamento. O desafio
cruza-se com o número de alunos e não têm faltado vozes a pedir que baixem.
José Ponte dirigiu até 31 de Julho o único curso de Medicina em que existem
mini-entrevistas de aptidão psicológica à entrada, na Universidade do Algarve.
Ser só para candidatos com uma licenciatura anterior e ter menos candidatos tem
possibilitado a selecção mais criteriosa, admite, receando que o aumento das
vagas - de 32 para 48 - se traduza em menor qualidade de ensino.
José
Manuel Silva, bastonário dos médicos, é o mais reticente: incluir avaliação ou
entrevista mais psicológica introduziria um grau de subjectividade que poderia
tornar o sistema permeável, avisa. Mas ficar de fora por uma décima não é
igualmente subjectivo? "Extremamente. Mas como é que um teste psicológico
vai ultrapassar a subjectividade de uma décima? Têm seis anos de formação
inicial em que é possível sinalizar dificuldades, caso existam", defende.
E os problemas de comunicação ou atitude, de que se queixam os doentes?
"Existem diferentes personalidades e sabemos que isso pode gerar
conflitos, mas a boa prática é chamar-se a atenção. Se fôssemos seleccionar os
jovens pelos melhores comunicadores teríamos uma medicina de banha de cobra".