sábado, fevereiro 02, 2013

História: "O destino dos órfãos do assassino do rei"


Segundo a jornalista da Visão, Sara Capelo, "foi há 105 anos que D. Carlos e o seu sucessor foram mortos. Um dos regicidas, Manuel Buíça, deixou dois filhos. Conheça a sua história.
Seriam quatro da tarde de 1 de Fevereiro de 1908. Talvez menos, quando Manuel Buíça entrou na sua casa, no 4º andar esquerdo do número 4 das Escadinhas da Mouraria. Levou os dois filhos, Elvira Celeste, de sete anos, e Manuel Augusto, de cinco meses, para o quarto e fechou-se lá com eles. Do lado de fora, a sogra Maria de Jesus, que vivia com ele e com os seus dois netos desde que em Outubro a sua filha Hermínia morrera na sequência do parto do rapaz, ficou em pânico. Vira-o chegar uns dias antes a casa com uma carabina e pensou que os fosse matar. Bateu à porta várias vezes: “Manuel, que vai fazer? Abra, por favor!” Ele abriu: tinha os filhos no colo e chorava. “Vai rebentar uma revolução e eu estou metido nela.” Saiu de casa e nunca mais regressou. Não passaram muitos dias até que ele a chamasse para uma conversa em privado: “Mande retirar a rapariga [a empregada que então a ajudava em casa] que eu preciso de estar só consigo.” Foi buscar fotografias, papéis e jornais e pediu-lhe que queimasse tudo. A sogra cumpriu. Ele sabia que podia morrer. Ou pelo menos desaparecer. Foi isso mesmo que deixou escrito no seu testamento, feito na rua do Crucifixo a 28 de Janeiro. Escreveu então a tinta preta, numa letra difícil, e por vezes, irreconhecível: “Minha família vive em Vinhais para onde se deve participar a minha morte ou o meu desaparecimento caso de dêem.” Era lá ainda que viviam os seus pais, apesar de ter nascido em Bouçais (concelho de Valpaços) em 1876. Tinha 32 anos. E foi um dos dois responsáveis pela morte do rei D. Carlos e do seu filho mais velho, D. Luís Filipe. O outro foi Alfredo Costa, 21 anos, caixeiro, sindicalista nascido em Casével, Castro Verde, em 1885. Elvira guardou a memória daquele dia e da agitação que se seguiu e que relatou ao jornal “Diário de Lisboa” em 1984. Há alguns dias que o pai andava taciturno. A sogra já notara e durante uma daquelas refeições em que comia calado, disse-lhe: “O Manuel anda tão triste e preocupado.”
A família real
O início do ano de 1908 tinha sido de insurreição. Nas sessões parlamentares, as intervenções da oposição eram violentas. Havia cada vez mais descontentamento com a repressão do governo de João Franco. A chamada “Revolta do Elevador” de 28 de Janeiro falhou, mas sabia-se que algo ia acontecer. Ainda assim, o chefe do governo descansou nos seus telegramas a família real e o rei D. Carlos decidiu regressar a Lisboa depois de uma temporada “longa” (desde 6 de Janeiro) em Vila Viçosa. Segundo os jornais da época, o prolongamento da estadia deveu-se “às dificuldades da situação política e estado de tensão excepcional dos espíritos”, lê-se na “Ilustração Portugueza”.
As últimas horas no Alentejo foram ocupadas com uma caçada. D. Carlos estava alegre e chegou a cantar com os seus 80 companheiros de batida. À noite, no salão Neptuno, onde jogou bridge (admitia que o fizessem a dinheiro, mas nunca com “paradas altas”, escreve Rui Ramos na biografia “D. Carlos”) com os condes de Arnoso e Tarouca ao som das guitarras do pessoal das cavalariças, estava mais introspectivo: “Encostava-se triste ao fogão”, recordou um desses músicos ocasionais, Manuel António Nunes, ao “Diário de Lisboa” em 1954.
Preparavam-se para sair do palácio em direcção a Lisboa às 10 horas quando se ouviu um barulho vindo da capela. Um criado de nome Serafim, que tinha fechado aquela porta havia poucos minutos, subiu para ver o que se passava. O príncipe D. Luís Filipe estava ali a orar e desabafou: “Talvez fosse melhor ficar aqui fechado!” Depois do regicídio, houve quem pensasse entre os criados reais, que tinha sido uma premonição. Partiram. Mas algum tempo depois, em Casa Branca, o comboio onde seguiam descarrilou. A loiça na carruagem real partiu-se. A viagem que deveria terminar às 16h15 com a chegada do vapor D. Luís (vindo do Barreiro) ao Terreiro do Paço atrasou-se três quartos de hora. “Chegámos pela tarde brumosa, quase no lusco-fusco”, contou Manuel António Nunes.
Os regicidas
Por volta dessa hora, Manuel Buíça e Alfredo Costa deixam o Café Gelo, onde comeram omeletes e beberam cerveja. Era habitual passarem lá muitas horas em convívios aos quais Elvira também assistia – na verdade, a criança brincava distraída pelo corredor daquele café no Rossio com a bengala do pai, que usava como um cavalo. A menina também via alguns dos amigos do pai (associados com a Carbonária) em reuniões na sua casa nas Escadinhas da Mouraria. Depois desses encontros terminarem e de todos saírem, o pai punha-a em cima de uma cadeira e perguntava-lhe:
- “Lembra-se de quem estava ali sentado?
- Era Afonso Costa.
- Não era, não senhor, a menina não sabe, a menina não o conhece.
- Era o Aquilino Ribeiro.
- Não era, não senhor, a menina não o conhece.”
Estão já a descer em direcção ao rio quando um informador da polícia desconfiado lhes pergunta ao que vão. Respondem-lhe: “O mesmo que o amigo faz, desejo ver passar o nosso rei e saudá-lo como ele merece.” Uma ironia. Buíça era professor no Escola Nacional e dava aulas particulares de música e de francês. Tinha feito o serviço militar e sido instrutor de tiro em Bragança. Sobre ele escreveu Aquilino Ribeiro: “De corpo era de estatura meã, rosto fino, tez branca a que dava realce a barba preta, em tons de fogo (...) a aparência toda ele franzino, mascarava-lhe inteiramente o génio assomadiço e a coragem (...). Só os olhos, muito imóveis e azuis”. Ao contrário de Alfredo da Costa, 21 anos, caixeiro, sindicalista que, segundo Joaquim Vieira em “Portugal Século XX: Crónica em Imagens”, era um “fanático republicano”, sobre Buíça, Aquilino escreveu que era republicano, “menos por convicção profunda que por ‘flanerie’ de espírito.”
Ainda segundo a descrição de Aquilino Ribeiro, Costa (na fotografia) era um homem “alto, desengonçado de corpo, duma fisionomia séria, quase triste, grandes olhos castanhos, nariz levemente amolgado sobre a esquerda”. Seguem então estes dois homens em direcção ao rio e estão já no Terreiro do Paço quando tudo se dá. A acção não terá durado mais de cinco minutos – tendo os bombeiros do Terreiro do Paço apontado que ouviram cerca de 20 tiros a ser disparados. Mas quem matou quem?
Uma peritagem feita pelo Laboratório da Polícia Científica nos anos 80 concluiu que terá sido a carabina de Buíça a dar o tiro que acertou D. Carlos perto da nuca e o matou instantaneamente. Quando Costa lhe acertou duas vezes nas costas, o rei já estaria morto. Concluíram também que é provável ter sido Buíça a ferir mortalmente D. Luís Filipe. Os regicidas têm o mesmo destino: são mortos pela guarda real. João Sabino da Costa, oficial de ourives de 21 anos e natural do Funchal, não tem nada a ver com a conjura mas acaba também morto. Sobre esta vítima acidental, a “Ilustração Portugueza” escrevia na edição de 10 de Fevereiro: “Assassinado, inocente, pela polícia”.
As fotografias dos três, deitados, desfraldados, com uma almofada a suportar a cabeça, saem nos jornais nos dias seguintes. Buíça é o que aparenta estar em pior estado.
Os Buíça
No dia seguinte, às nove horas da manhã, a polícia à paisana invadiu o 4º esquerdo das Escadinhas da Mouraria. “Revolveu-nos tudo, até os colchões. Levaram muitos livros do meu pai”, relatou Elvira Buíça ao “Diário de Lisboa”. Daí seguiram para o Governo Civil (o irmão de meses ficou na casa de uma vizinha), onde esperaram até à tarde até que Maria Jesus foi chamada para interrogatório. Depois foi a vez de Elvira. Um homem vestido à paisana, sentado atrás de uma secretária onde estavam muitas fotografias de Afonso Costa, Aquilino Ribeiro e outros amigos do pai.
- O teu pai tinha muitos amigos que lá iam a tua casa, não tinham?
- Não sei, eu deitava-me muito cedinho.
Mostrou-lhe as fotografias e quis saber se conhecia alguém. Ela disse-lhe que não. “Apre! Esta está bem ensinada”, exclamou o polícia. Daí seguiram para a morgue onde a avó tentou entrar e deixou Elvira à porta onde estava uma multidão. Um homem que a viu ali, sozinha a chorar, perguntou-lhe como se chamava. “Elvira Celeste da Costa Buíça”. Ele avisou-a: “Não digas isso a ninguém.” Mais uma premonição, mas que só se concretizaria alguns anos depois. Até 1914, os órfãos e a avó continuaram a viver na mesma casa graças aos bens da família Buíça e a uma subscrição pública. Não ficaram imediatamente pobres, como previra Manuel Buíça no seu testamento. Nos dois primeiros anos, a correspondência que recebiam foi vigiada pelas autoridades. Entre os amigos que tinha, apenas Aquilino Ribeiro os visitou depois de regressar do exílio. Mas a partir de 1914, a sua condição de vida começou a piorar. Usar o nome Buíça podia significar não conseguir um emprego. Um dia, Elvira concorreu ao lugar de escriturária numa companhia de navegação. Soube que tinha ficado em primeiro no processo de selecção e que, portanto, seria contratada. “Mas no dia seguinte, depois de atentarem bem no meu nome, chamaram-me e pediram-me desculpa por ter havido um engano.” Tinha sido a segunda classificada. Depois disso, usou cartões de visita onde não tinha o nome do pai. Teve muitos ofícios: trabalhou nos Armazéns Reguladores do Estado, como costureira no teatro São Carlos; lavou escadas e roupa. E casou-se com um antifascista tal e qual como o seu irmão Manuel Augusto. Tanto o marido como o irmão estiveram presos – Manuel chegou a ser deportado para Timor.
“Quando foi deportado tiveram de o levar em braços para o navio, porque o meu irmão tinha o corpo coberto de chagas devido aos maus tratos”, contou Elvira. Regressou um ano depois, curado, mas acabou por morrer aos 35 anos. “Paralítico e dizem que tuberculoso”. No dia em que falou ao “Diário de Lisboa”, tinha já 84 anos, Elvira vivia com uma filha, um neto e um bisneto na cave de um prédio fora de Lisboa. Sobre o crime cometido pelo pai, disse: “Eu condeno o acto em si mas compreendi-o muitíssimo bem. (...) se para haver paz é preciso primeiro haver guerra...”.