sexta-feira, dezembro 31, 2010

Entrevista: "PS não convive bem com juízes e tribunais"

"António Martins, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), diz que a equipa do Ministério da Justiça foi um “completo erro de casting”.
Correio da Manhã – Que balanço faz da Justiça em 2010?
António Martins – O balanço não pode ser positivo, mas não esperava que fosse tão negativo.
– O que é que o surpreendeu?
– O completo erro de casting que foi a equipa do Ministério da Justiça... Um completo erro de casting.
– O ministro?
– Seguramente começando pelo ministro, mas continuando no secretário de Estado. A única excepção acabou por ser o secretário de Estado que se demitiu, o doutor João Correia.
– Mas desde 2005, quando o primeiro Governo de José Sócrates tomou posse, que tem havido um clima de crispação com as magistraturas. Não haverá um problema da política do Governo para a Justiça?
– Há efectivamente uma cultura em certos sectores políticos, nomeadamente no PS, de não conviverem bem com a independência dos juízes e dos tribunais, com a autonomia do Ministério Público. Chegamos ao fim deste ano e, se espremermos, as decisões concretas positivas para os cidadãos, para os tribunais, para o funcionamento do sistema são muito curtas.
– O mapa judiciário não avançou...
– Essa era seguramente a reforma mais importante, mas está completamente parada. O Governo não avaliou a experiência das comarcas-piloto e devia tê-lo feito. Isso não aconteceu na reforma do mapa judiciário nem na acção executiva. Depois, existiu uma falta de capacidade de responder àquelas pequenas coisas que não podem deixar de funcionar: assistimos a tribunais com luz cortada, com água cortada... Isto está numa degradação... Era para mim inimaginável chegar a este ponto.
– E o ministro continua em silêncio.
– Quando o barco está a ir ao fundo, ter a atitude da orquestra do Titanic pode ser heróico, mas essa atitude que o ministro está a ter de assobiar para o lado não é uma atitude de heroísmo como aqueles músicos tiveram naquele momento. É uma atitude de completo abandono das instituições da Justiça.
– A ASJP já admitiu novas formas de luta contra as medidas de austeridade que vão ter como consequência o corte dos salários dos magistrados...
– Nós não questionámos a contribuição dos juízes. Nós questionamos é o modo. Sempre dissemos que não se devia pedir o sacrifício só às 450 mil pessoas que trabalham no sector público. O professor que ganha dois mil euros vai ver reduzido o seu vencimento, mas o Zeinal Bava ou o António Mexia, ou estes ‘mexias’ e ‘zeinais’ que andam por aí todos a ganhar milhares por mês e milhões de prémios por ano, não vêem reduzido rigorosamente nada. Esta é que é a questão, é injusto socialmente.
– Então não questionam o corte...
– Não. E neste momento o que está em causa é um problema de condições de independência. O Governo apresentou uma proposta de alteração do Estatuto dos juízes em que vai desmantelar peça por peça alguns dos pilares que permitem que hoje o juiz possa dizer assim: "Eu decido desta maneira e não estou preocupado se isto agrada ou desagrada a alguém, nem estou preocupado se vou ganhar ou perder alguma coisa com isto".
– Qual é o conteúdo da proposta?
– Uma parte da remuneração fica dependente de um despacho dos ministros da Justiça e das Finanças. É inaceitável que parte do vencimentos dos juízes dependa dos humores dos seus ministros. Isto é acabar com os alicerces do poder judicial. Qualquer dia não há condições para julgar com independência.
"COM PARAÍSOS FISCAIS NÃO CONSEGUIMOS TER ÊXITO NA INVESTIGAÇÃO"
– Falando da importância que a Justiça tem para a economia, não se justificaria, nesta situação de emergência, criar o crime de enriquecimento ilícito?
– Não é por criarmos o ilícito só por si que resolvemos o problema que lhe está subjacente. A generalidade das situações que poderiam caber nesse tipo de crime já hoje podem ser punidas por outro tipo de crimes. O que não temos é condições para as investigar.
– Defende uma alteração do modelo de investigação?
– Não, o que defendo é uma alteração das regras processuais. O crime de corrupção é de difícil prova e, enquanto continuarmos a ter paraísos fiscais, dificilmente conseguiremos ter êxito nestas investigações. Há pessoas que nunca fizeram mais nada na vida além de exercerem cargos públicos, onde ganhavam valores que não lhes davam para adquirir património, e a história das heranças e dos euromilhões não dá para todos... Se fôssemos investigar essas situações, e se fosse possível seguir o rasto do dinheiro, tínhamos condições para perceber que essas pessoas receberam dinheiro por outra via. Mas tudo está montado de uma forma que, para a investigação seguir o rasto do dinheiro e fazer a prova, é muito difícil. O sistema judicial é cada vez mais posto à prova precisamente porque as pessoas têm a noção de que há pessoas a cometer crimes de corrupção e a ganhar milhares com os seus cargos.
PERFIL
António Francisco Martins preside à Associação Sindical dos Juízes Portugueses desde 2006 (está no segundo mandato). Nasceu em Angola a 29 de Dezembro de 1959 e veio para Portugal com cinco anos. Licenciou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e ingressou na magistratura judicial em 1989, no Seixal, tendo passado por várias comarcas no Sul do País. Actualmente é desembargador na Relação do Porto" (entrevista conduzida pela jornalista do Correio da Manhã, Ana Luísa Nascimento, com a devida véia)
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