sexta-feira, agosto 29, 2008

Opinião: "Rendimento Social de Decepção"

"Ainda há lavadeiras em Alfama. Dessas que esfregam a roupa à mão nos tanques públicos e fazem concorrência às lavandarias. Adelina é uma dessas resistentes. Mulher de porte altivo nos seus 72 anos e na sua veste negra, onde ressalta o amplo avental branco. Conhecia-a via net, na página multimédia da RR. Não me lembraria dela não fora a justificação que a própria disparou para a câmara quando lhe perguntam porque faz parte de uma espécie em vias de extinção, passando os dias com uma única companheira entre uma dúzia de tanques donde não se aproximam outras mulheres: "Agora há o rendimento mínimo. Arranjam um bebé! E pronto!".Adelina sabe que há profissões que acabam. Diz-nos que antes já foi "cartonageira", mas o aparecimento dos plásticos acabou o negócio das caixas de cartão (fosse lá o que fosse o ofício...), mas, ao contrário do que eu esperava, não justifica a extinção do posto de trabalho com o progresso tecnológico: a proliferação das máquinas de lavar acessíveis a todos e a feroz concorrência das grandes cadeias tipo 5 a sec. Não! Para ela, o ofício não morrerá pela falta de encomendas, nem pela incapacidade de resistir à concorrência desleal dos potentes motores industriais movidos a tira-nódoas. Não. O que mata o ofício é o rendimento mínimo e a possibilidade de decidir ter um filho. Incrédula, a jornalista ainda exclama: "Não querem trabalhar?!". E ela remata, sem mais: "Pois, não!".Lembrei-me dela ao ler o relato de mais uma tentativa de homicídio de uma jovem mulher, que caiu baleada pelo companheiro em plena rua de outro bairro social (S. Roque da Lameira). Tinha um filho de quatro meses ao colo. O relato dos vizinhos - cito de memória - descrevia a vítima como tão pacata que "passava o tempo sentadinha num banco à beira de casa" enquanto o companheiro "se enfrascava na tasca do senhor Joaquim". Imagino-a numa sucessão de dias passados nessa mansa espera com o filhito ao colo. À espera de quê? Do regresso do "monstro" (o qualificativo é meu!), que, na volta das tabernas onde arejava o desemprego, a agredia sistematicamente dentro e fora de portas. Foi alvejada na cabeça, segundo o relato, por "recusar passar ao companheiro bêbado o rendimento mínimo" que acabara de receber e queria reservar "para pagar a renda " e alimentar o filho. Desta vez, a recusa não lhe custou apenas a sova habitual, custou-lhe provavelmente a vida.Pergunto-me que projecto de reinserção social tolera o passar os dias "sentadinha num banco" esperando o regresso do agressor. Que acompanhamento social tem um casal onde é pública e notória uma história de violência que até é crime público. Tolerada meses a fio. A vizinhança calou-se, acobardada. E onde andou, entretanto, a Segurança Social?Razão tinha Saldanha Sanches no magnífico artigo no último Expresso. Lembrei-me dele quando segunda-feira vi na RTP a reportagem da entrega de chaves de casas sociais em Loures. Uma mulher diz que é o dia mais feliz da sua vida. Vai receber a casa dos seus sonhos, onde pretende cuidar ainda melhor dos dois filhos. Fico contente por ela. Não acho que os direitos se agradeçam. E o direito à habitação condigna é um dos mais básicos. Mas é isto que eu espero da aplicação dos meus impostos". (Leia no Publico o artigo de Graça Franco que, com a devida vénia deixamos aqui transcrita a respectiva parte inicial). Recomendo, aqui.

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